sábado, 12 de maio de 2018

O que é COMUNISMO, afinal? – Para além do senso comum

Em homenagem aos 200 anos de Karl Marx


Comunismo NÃO É um sistema.
Comunismo é uma forma de sociabilidade que há de ser vivida sobre o pressuposto da produção e reprodução (dos indivíduos e da sociedade) calcada numa forma de propriedade (apropriação dos meios e fins do trabalho) de caráter social, donde o comunismo ser um socialismo.
Por esse mesmo motivo, o comunismo não é e não pode ser falho, pois sociabilidade não possui função.
Quando alguém acredita que o comunismo “não funciona”, é porque tem uma noção bem fantasiosa do que seja a sociedade: é uma coisa, ou melhor, uma outra coisa que os indivíduos associados – uma sociedade existente independente dos indivíduos, um “sistema” pairando sobre eles. Durkheim merecia ver isso!
Comunismo e capitalismo não são coisas, não são “modelos”, “sistemas”, esquemas, planejamentos de engenharia social ou anti-social, mas sim formas distintas de associação entre indivíduos, modos herdados e posteriormente reproduzidos por eles para organizarem entre si – no intuito de, simplesmente e antes de tudo o mais, sobreviverem – suas relações com a natureza; ou seja, o trabalho, a divisão do trabalho, a divisão dos produtos do trabalho etc.
Portanto, comunismo e capitalismo não são máquinas – que funcionam ou não, pois não são algo distinto dos indivíduos, um algo que “tem de funcionar”.
Também não estamos falando de formas de Estado, de regime político, governos etc. – aliás, assuntos que só os puros de alma crêem que devam ser pensados em termos funcionais, se é que funcionam de qualquer jeito. Quer dizer, funcionam: especialmente quando parece o contrário.
Estamos falando de pessoas vivendo suas vidas e o tempo todo em relação umas com as outras. Será que uma pessoa deve ser avaliada na medida em que “funciona”?
Trata-se de formas de sociabilidade, de um fazer-se cotidiano e entre todos os demais (Marx fala da vida prática de homens vivos e ativos); daí que a avaliação de uma forma social só pode ser realizada com seriedade se levar em conta a sua história, sua localização geográfica, suas relações econômicas e políticas internas e com as demais sociedades etc. 

Não nos preocupemos, por exemplo, em virar uma “nova Venezuela” ou Cuba. Isso só seria possível apagando tudo que faz o Brasil, a Venezuela e Cuba serem exatamente o que são – Brasil, Venezuela e Cuba. Nem um jogador de WAR pensa de maneira tão rasa.
Se as tentativas (supondo que realmente foram) dos países ditos socialistas do século XX em transformar a sociedade naufragaram, não é porque os planos de Marx estavam errados. Primeiro, porque Marx não tinha tais planos; e depois, porque esses países existiam na realidade e não na fantasia.
Ao contrário do que reza o empirismo trivial dos “críticos dos sistemas”, a realidade é muito mais que aquilo que está estampado em nossas retinas. É assim que Tomé virou crente: olhou o céu e viu o Sol girar em torno da Terra. E depois viu a Terra girar em torno de seus olhos.

Se alguma “ciência” social qualquer considera socialismo e capitalismo como “sistemas sócio-econômicos”, é porque, antes de tudo, além de estar descompromissada com a verdade, está compromissada com seus financiadores. A razão crítica lhe é socialmente vedada.
O relacionamento cotidiano entre indivíduos, a partir do que herdam das gerações passadas (história), em meio a determinados espaços geográficos, onde organizam o trabalho (relações econômicas) e dividem os papéis na produção e os direitos no consumo (política) nada tem de sistemático, muito menos é um modelito social. Estamos falando da prática viva de indivíduos vivos.
E quanto ao aspecto teórico: a ideologia comunista não é um TED ou um stand-upde esquemas e propostas. É uma crítica à forma atual do indivíduo viver em meio a outros indivíduos, no interior da qual se vislumbra uma saída da monstruosidade moderna. 

Comunismo não é uma “nova política” para aplicar por sobre o capitalismo (a noção mesma de aplicação de teorias, modelos etc. já denuncia a tremenda falta de sentido ontológico que dá consistência ao mingau produtor das sinapses críticas). Por pensar assim que os austrólogos imaginam refutar Marx por meio de problemas que só fazem sentido numa economia capitalista (como, p.ex., o “cálculo econômico” – que o capitalismo não parece saber fazer muito bem, se é que pretende). Projetam no comunismo o que não ultrapassa a caixinha que encerra seus pensamentos.
Comunismo não é alternativa de organização econômica, política ou ideológica do mercado. Não é produção para a troca. Comunismo é sociedade de consumo. Produção para atender as necessidades de consumo dos indivíduos. Ao contrário disso, e do que circula no senso comum, capitalismo é o exato oposto de umasociedade de consumo; é sociedade mercantil. No capitalismo o consumo dos indivíduos e os próprios indivíduos simplesmente não interessam; importa unicamente valorizar o capital, custe a humanidade e a natureza se preciso for.
Comunismo não é quando o trabalhador tem propriedade dos frutos de seu próprio trabalho; a partir da qual, troca seu produto por outro que necessita mas não produz.
Não se trata de ter posse privada nenhuma do que se produz, com fins a usar o produto como capital ou dinheiro, pois do contrário estaríamos na situação da troca enquanto escambo. Ora, no comunismo não há troca ou produção para o mercado, e antes de tudo porque, nele, ambos são dispensáveis. Uma produção que visa o consumo não mede os produtos entre si, ou seja, prescinde da existência do valor. O que determina a economia  são as necessidades do indivíduo, e elas não são condicionadas por suas capacidades manuais e intelectuais de produção. A satisfação das carências do indivíduo não se subordinam ao que ele pode e consegue produzir.
A economia comunista é baseada no compartilhamento dos produtos de trabalhos que se desenvolvem de acordo com as necessidades, os interesses e gostos dos produtores. Tal compartilhamento é social, e não coletivo. Não há mesmo a necessidade de qualquer contato físico entre os indivíduos que disponibilizam os produtos. Estamos falando de uma sociabilidade pós-capitalista, e não tribal.
O compartilhamento social é uma utopia ou já se entrevê na realidade?
Assim como meio de produção não se confunde com o produto final, tão logo o indivíduo se apropria de um bem designado ao seu consumo pessoal (pois, no comunismo, todo produto se destina ao consumo, ao contrário do que ocorre na sociedade mercantil moderna), não há porque contestar seu direito de posse e usufruto sobre ele. Aliás, conceber o questionamento de tal direito se torna puro nonsense.
Nota bene: não se trata de dizer que “se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence”; pois o que é isso, uma classe social, a quem tudo pertenceria? Como poderia uma classe social ser proprietária de quaisquer bens, como uma classe social poderia usufruir deles? Por outro lado: como a produção seria propriedade de cada indivíduo da classe trabalhadora? Como se determinaria a distribuição da parte de cada um no interior da classe trabalhadora sem reduzir o indivíduo ao mero dispêndio de sua força em certa quantidade de tempo trabalhado – ou haveria outra medida do que poderia ser seu direito? Pois essa redução configura a determinação comum aos indivíduos da classe. Essa redução é a redução dos indivíduos à classe, sua abstração enquanto apenas trabalhadores, meros “proprietários” ou provedores de mera força de trabalho. E toda essa questão quando o que interessa é acabar com as classes sociais!

Comunismo não é uma forma diferente de Estado, é a destruição ou a caducidade do Estado.
“Ora, mas e a ditadura do proletariado?…”
No Manifesto Comunista de 1848 – este que foi o divisor de águas da história moderna, o ano que uma revolução proletária varreu toda a Europa, tornando reacionária e mesquinha a até então iluminista e esclarecida classe burguesa, marcando o início da decadência da sociabilidade do capital –, Marx diz:
— “Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade.
/…/ a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.
O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas [grifos meus: estamos longe de qualquer hobbesianismo aqui].
Isto naturalmente só poderá realizar-se, a princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção”.
Eis aí a democracia como o próprio modo de exercício da ditadura dos trabalhadores. Seu caráter será de autêntica democracia na proporção mesma em que essa ditadura for bem sucedida no que interessa, sua finalidade sine qua non, que lhe dá seu tom próprio e específico: investir o poder político contra a propriedade privada que sustenta a dominação burguesa.
Por fim, emancipada do arraigado moedor social de carne humana, a propriedade privada, os indivíduos podem abolir o tolhimento que as classes sociais, o mercado, o dinheiro, “a economia” etc. lhes impõem, e a sociedade pode se expurgar do gigantesco representante oficial do capital, o Estado:
— “Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associadoso poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.
Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação – onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”.

É preciso atentar para algo essencial: estamos falando de revolução.
Não há revolução sem que seja preciso tomar o poder material do Estado, porque do contrário, o Estado irá sufocar a revolução, tal como faz com a mais ínfima greve. O Estado sufoca greves porque o Estado é a antítese da revolução, e uma greve é o pré-vestibular desta.
De fato, se não houver o contexto de uma revolução dos trabalhadores, tomar o poder é o mesmo que manter o poder, pois ele apenas muda de mãos. Ora, mas aí a ditadura “do proletariado” não seria ditadura do proletariado, seria ditadura de um grupo em torno de um ditador.
A finalidade da ditadura do proletariado, ao contrário (isto é, no contexto de uma revolução), não é política – no sentido em que visa apenas tornar ineficaz “a oposição” (enquanto mera oposição política) –, e sim social: trata-se, imediatamente, de tornar ineficaz a contra-revolução; mas, acima de tudo, trata-se de sufocar as forças despóticas do capital como um todo. Daí ser o único caminho real, não-utópico, da realização de uma verdadeira democracia, assentada na soberania dos trabalhadores; e esta é a única soberania legítima, uma vez que é calcada nos legítimos produtores do mundo social.
Isso é a revolução, da qual a ditadura do proletariado é apenas um meio. A finalidade imediata da ditadura do proletariado não é política, senão enquanto visa acabar com a própria política. O que pressupõe sua finalidade maior, condição necessária daquela, a socialização da propriedade privada (e eis aqui o que é o essencial, onde está posta a diferença entre comunismo e anarquismo; pois este mira a copa estatal como determinante da raiz social, quando não simplesmente ignora esta – e não é por outra razão que o anarquismo é apropriado pela direita e vira proposta de um capitalismo à là Somália).
Donde a democracia realmente social deve finalmente terminar dissolvendo a si mesma, última forma de Estado e regime de governo, na medida em que o fim da propriedade privada (e portanto das classes sociais) os torna obsoletos, caducos.
Pois a organização da sociedade por quem a produz e reproduz é precisamente a desintegração das classes sociais, ou seja, da parasitagem exercida por quem não trabalha sobre quem trabalha. Não há mais sustentação real para existir um aparato de dominação e nem o exercício desta.
O fim da propriedade privada é não apenas a finalidade, mas também o fim da ditadura do proletariado. E a revolução social é o meio para tornar social a apropriação dos meios e fins da produção. E não haverá outro. 
Sem revolução, nada feito.

Alguém pode perguntar: “que garantia terei que um governo dos trabalhadores não irá se transformar em uma outra ditadura de novos senhores?”
Nenhuma.
“Garantia” é uma noção criada pelo e usada para o mercado, nada mais que uma promessa para conquistar consumidores e vencer a concorrência. E nem assim o comércio garante realmente alguma coisa (pra qualquer problema existe a “justiça” do consumidor, na qual o indivíduo será mais um entre milhares a tentar reverter uma situação na qual foi lesado). “Garantia” é, portanto, uma noção mais fictícia que real. Nada que existe é garantido.
Mas uma coisa é certa: as galinhas só passam a tomar conta do galinheiro quando este galinheiro está organizado o suficiente para expulsar as raposas que desde sempre o comandaram.
Portanto, a ditadura do proletariado pressupõe uma abertura real à participação popular, sem a qual ela não acontece. E isso não é nada, mas menos ainda é pouco.
Não há ditadores na ditadura do proletariado. A revolução é que orienta o processo: trata-se da sociedade se auto-organizar, a ponto de se despir da necessidade de uma esfera acima dela a comandar-lhe.
Eis a tarefa histórica que devemos a nós mesmos e às futuras gerações. Herdamos esta dívida, e ela só tem crescido, enquanto o prazo se esgota. Pelo que estamos aqui, senão pela humanidade?

Marx e Engels na tipografia do Manifesto de 1848