sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Uma nota sobre o misticismo da noção de “ideologia” no marxismo vulgar

Por que “o pobre” vota na direita?

Por que os trabalhadores não se revoltam contra sua própria condição de dominados?

O que faz com que “não percebam” a desigualdade social como injustiça?

Essas e outras questões afins são respondidas pelo marxismo vulgar a partir do “conceito de ideologia de Marx”, que explicaria a dominação e hegemonia da classe burguesa.

Trata-se de uma tese ela mesma tão dominante e hegemônica no marxismo quanto simplória e idealista:

A Ideologia” [
*] (não é nem uma ideologia, é a maiúscula mesmo) torna os trabalhadores dóceis e escamoteia a exploração ao naturalizar as relações sociais.

Mas o mistério começa quando perguntamos: como é que ela “cola” na cabeça deles?

(A título de provocação: antes do capitalismo havia também uma “ideologia feudal” que mascarava a servidão dos trabalhadores na corvéia, de modo a impedir que eles não se rebelassem contra ela?)

Pois a tese da dominação por meio da “ideologia” – de lavra neo-hegeliana e combatida por Marx em “A Ideologia Alemã” (um dos livros mais ignorados entre os marxistas em geral) – não tem uma palavra sequer a dizer quanto à chantagem do assalariamento, ou melhor, à separação de trabalhadores e meios de produção. Por isso mesmo é que ela possui esse aura místico e nas brumas deste se mantém.

E o pior é ver isso sendo vendido como marxista – quando o marxismo busca, ao contrário, compreender as produções ideais a partir das relações sociais de produção, donde jamais admitir a idéia de uma fantasmagoria flanando sobre os indivíduos e determinando suas ações de forma descolada de suas vidas materiais ou decalcada em seus cérebros.

Ao mandar o materialismo às favas, o marxismo vulgar não perde apenas a total capacidade de compreensão do que sejam as ideologias, mas também a possibilidade de simplesmente identificá-las enquanto ideologias. Daí pra frente, tudo se torna gato pardo na noite escura: a práxis se torna praticismo mecânico e realpolitik oportunista, e o próprio marxismo vira um Frankenstein teorético qualquer.

Exemplos não faltam, né?

------


* A propósito da tradicional idéia de uma "ideologia dominante" na sociedade capitalista, a "ideologia burguesa":

Não existe "a ideologia burguesa", e sim várias ideologias burguesas. Qual delas é a dominante?

Ao meu ver, é difícil dizê-lo. Principalmente porque o "senso comum" está impregnado de muitas ideologias (inclusive não-burguesas), porém nenhuma delas está presente nele por inteiro, senão em pedaços. Poucas pessoas procuram estudar as ideologias e conhecê-las integralmente.

De modo que talvez pudéssemos dizer que o dominante no senso comum são retalhos ideais de procedência burguesa, mas isso não significa que sejam partes de uma mesma ideologia. Por exemplo, encontramos nele um bocado de idéias realistas, mas pragmáticas (derivadas das relações práticas mais imediatas, empíricas, da sociabilidade mercantil), ao lado dos idealismos mais místicos; ou então, idéias que fazem apologia direta do mundo atual ao lado das que fazem outra forma dessa apologia, por via "crítica", negando o paraíso da primeira forma ao mesmo tempo que toda via de superar tal mundo; cientificismos e subjetivismos; positivismos e pós-modernismos; flower-power e punk; ateísmo e agnosticismo; Keynes e Mises; etc. 


------


PS. Marx não fala em lugar algum que "a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante", mas sim que

"As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes; ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão submetidas em média as idéias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, ou seja, as idéias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência e, portanto, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e consequentemente, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de idéias, e regulam a produção e a distribuição de idéias do seu tempo; donde as suas idéias são as idéias dominantes da época".

------

.

[Confira este outro texto, em que relaciono ideologia, alienação e fetichismo: Alienação: fenômeno objetivo social, e também este aqui, a respeito da relação consciência – vida cotidiana: Nada mais natural que um pobre de direita]


terça-feira, 18 de outubro de 2016

O fascismo colore o Brasil: a esquerda "classe média" pira!







"Tenho 5000 amigos nesta rede. A maior parte, de esquerda. Desses, a maioria parece estar vivenciando algum tipo de luto. Uns ficam choramingando pelos cantos, decantando a falta de esperança, pranteando os tempos idos. Outros deliram, sem peias. Passam os dias e noites a conversar com um coxinha imaginário. Riem do coxinha imaginário, apontam o dedo pro coxinha imaginário, berram: "BATERAM PANELAS? AGORA AGUENTA!". Os verdadeiros coxinhas, quando não foram eliminados da timeline dessas pessoas em algum momento entre 2013 e o ano passado, estão plácidos, contentes, a compartilhar fotos de gatos, cachorro, comida. Eles não ligam. Isso me assusta, pois é um sintoma, eu reconheço sintomas.

Esse post gigante e algo confessional é para dizer que aquela sombra [da depressão], minha velha conhecida, está rondando muitos de vocês. Vocês precisam se cuidar. Ou vocês dão o seu jeito de irem lixando, pouco a pouco, as diversas camadas de cinza, ou deveriam procurar tratamento adequado. Saiam dessa espiral de lágrimas, luto, negação, está começando a ficar preocupante. Luto não era verbo? Pois então".





Eis aí uma observação arguta do Pedro Munhoz, à qual eu gostaria de acrescentar um rabisco.

A respeito do "avanço e proliferação do fascismo no Brasil", que draga as energias psíquicas de tantos esquerdistas por aí, eu havia dito, em março (cá e lá no facebook), algo que vale a pena redizer:


Essa tese de um "crescimento do fascismo no país" é: empirista, impressionista, falsa, derivada da coleta de casos em jornais e "fundamentada" no marketing político do medo, no reginoduartismo difundido pelo PT em apuros e por suas rêmoras (p.ex., Guilherme Boulos e sua "crescente onda conservadora no Brasil").

É preciso lembrar que o fascismo é pequeno-burguês, e isso é normalíssimo. E que a "classe média" não apita. Late mas não abocanha.

O que a manadinha fascista queria era a queda do PT. Já bastava a ela. Depois que o PT caiu, ela continuou a fazer seus atos? Bateu em comunistas na rua, quando ficou claro que os problemas do país não eram o PT no poder e a esquerda em geral? 

Não. Depois que o PT caiu, os fascistas vestiram o pijama. Pra eles era isso que estava em questão, algo totalmente independente dos problemas econômicos e políticos e seus desdobramentos, pois em suas fantasias o único problema era vencer o que não passa de um mito: "o partido e a política comunista em ação no Brasil". E eis que estão dispensados de ter qualquer clareza sobre qualquer coisa.

O fascismo, portanto, não cresceu e nem se expandiu: esteve aí desde sempre, ainda que deitado eternamente em berço esplêndido, amando a Pátria em seus sonhos, mas eclodindo quando chamado pelo MBL a salvar da morte vermelha o lábaro da liberdade.

Engraçado é reconhecer que, quanto à determinação social do fascismo, a Marilena Chaui não estava de todo errada. A pequena burguesia (que ela chama de "classe média", com a precisão de um hipopótamo) sempre foi fascista. Se agora "o gigante acordou", se de repente o fascismo resolve dar as caras e mostra sua cabeça monstruosa, daqui a pouco ele dorme de novo.

Nada disso seria qualquer problema se a maior parte da esquerda brasileira não insistisse em dormir ao seu lado. 

O sono da esquerda produz monstros.

Quanto a isso, recentemente eu falei da "classe média autocrítica" - ou crítica de uma "outra" classe média -, que constitui um bom bocado do eleitorado e da militância das esquerdas light, essas que querem conquistar a pequena-burguesia para um socialismo de reformas do capitalismo, feitas através da política (p.ex., o próprio PT, seu pet amestrado PCdoB e seu filho adolescente rebelde PSOL).

Centram foco na disputa pela "classe média", da qual falam tanto quanto o pastor fala do diabo, num bizarro exercício de narcisismo.

Deixam de disputar os trabalhadores porque são socialistas cuja perspectiva social é pequeno-burguesa, donde se vêem engalfinhados em um vórtice de obscurantismo teórico e prático que os lança em perdição e ceticismo e depois os cospe na direção da religião, do cinismo e do liberalismo.

Pois que tratem de se livrar dessa idéia fixa peçonhenta em atacar a pequena-burguesia que colore seus pesadelos, e mirem esforços para a organização dos trabalhadores, a única classe que pode ter interesses em mudar a sociedade.


.


Impeachment: golpe ou política democrática?



Dizem por aí que a política brasileira é uma farsa. Que não dá mais pra acreditar nela. Que o partido popular enganou o povo. Que as elites deram um golpe e que o golpe ainda está acontecendo. Que a Constituição foi rasgada e democracia acabou. Etc.
A política brasileira é uma farsa? O que ela devia ser, senão… política?
Política não é igreja, é guerra.
Aos crentes da política celestial dos anjinhos, cabe dizer algumas coisas.
Pra começar, a Dilma não precisa se preocupar. O Collor, quem diria? e sendo quem é, conseguiu se eleger senador depois de sofrer um “golpe” muito pior. E também porque o PT não enganou ninguém. Os desiludidos é que nutriram esperanças e ilusões ingênuas sobre ele (e agora por coisas piores). Mas vamos ao que interessa.

O PT não foi apeado do poder por meio de um golpe.
Não houve ruptura institucional, a Constituição não foi rasgada e a democracia não acabou.
Ao contrário, estamos em plena e puríssima vigência da democracia do Estado de Direito burguês, e a Constituição continua firme e forte a serviço do capital. Não houve golpe, mas sim uma manobra política – no sentido mais íntegro da palavra, ainda que seu conteúdo não o possa ser.
Todas as medidas “golpistas” do atual governo, bem como sua própria entronização, passam por sobre um tapete vermelho no Congresso eleito pelo povo e “para o povo” – onde, aliás, o PT permanece enquanto oposição e, tal como no caso do próprio PMDB na ditadura militar, contribui para legitimá-lo.

É claro que há quem ache estranho, imoral e inadmissível – por achar que se trata de uma legitimação do impeachment – que eu diga que o tal golpe “contra a democracia” nada mais foi que pura política operando em perfeitos marcos democráticos.
Eu não legitimo política alguma, e política alguma requer minha aprovação. Me interessa é dizer o que as coisas são, tais como elas são.
O tal golpe “contra o Estado Democrático de Direito”, muito antes pelo contrário, em nada atentou contra esse mesmo Estado.
Aliás, pondo os pingos nos is, tal manobra política não passou da mera demissão do PT do cargo de serviçal da burguesia.

Longe de querer enfraquecer as lutas contra o governo Temer, a minha preocupação é justamente chamar a atenção para o efeito prático desmobilizador do uso do termo.
Quando o PT vende a tese do “golpe” e todo um varejo passa a distribuí-la, nada mais fácil para a direita que contra-golpear essa tese lembrando duas ou três coisas:
1) o “golpe” em questão está previsto na Constituição, e todas as instituições democráticas, longe de serem ameaçadas por tal “golpe”, o referendaram. O TCU rejeitou as contas, a Câmara dos Deputados autorizou a instauração do processo, o Senado admitiu sua abertura, o STF barrou todos os recursos impetrados pelo Governo, a OAB recomendou, etc. Quem podia dizer que era expediente ilegítimo, pois que engolfava o jurídico no político, o fez: José Eduardo Cardoso participou de todos os trâmites, apresentou impecável defesa de Dilma, e perdeu em todas as instâncias. Decerto, não se esqueceu que o que seria o “jurídico” estava sujeito a voto em todas elas. Mas, se isso é golpe, por que legitimou, de cabo a rabo, todo o processo?
A propósito, quem fala em “politização do judiciário” e “judicialização da política” parece se esquecer que o primeiro é (ainda que circunscrito às bolhas tribais da magistratura) perfeita e integralmente político, e a segunda é que elabora as leis (mesmo quando absurdamente ilegítimas).
2) é preciso explicar (e convencer) por que o impeachment de Collor (apoiado pelo PT) não foi golpe. O que era crime nesse caso e no caso atual é objeto de análise e decisão do Senado, e em ambos os casos o Senado concluiu pelo impeachment.
3) é absurdo forçar a aproximação do que há de comum entre Dilma e Jango, quando as diferenças são gritantes; em outras palavras, o que a palavra de ordem petista faz é esticar o conceito de golpe até o ponto em que se possa encaixotar o impeachment da Dilma dentro dele. No entanto, com isso se abre uma “jurisprudência” para se qualificar de golpe uma enormidade de ações políticas triviais, e de se perder de vista exatamente a especificidade daquilo que, até então, não era nada trivial, mas sim um golpe.
A partir desses argumentos, nada impede a direita de dizer que essa é apenas mais uma tentativa do PT em enganar o povo, que já anda bastante escaldado.

A militância e sub-militância petistas, por sua vez, insistem no brado contra o “golpe”
1) ao confiarem na sofistaria que avaliza a idéia de que a democracia está em disputa, quer dizer, que ela pode ser conquistada, melhorada, aperfeiçoada ou até mesmo se tornar “de esquerda” (resta saber de quem seria essa proposta, já que o PT só é democrata da boca pra fora). Em consequência, se lançam a essa disputa de convencimento afirmando que ela, a democracia, e não o PT, é quem foi derrotada pelo “golpe” (apesar do PT ter seguido e legitimado o processo até o fim e toda a vida política brasileira, em todos os aspectos, permanecer tal como antes).
2) ao acreditarem que a política é uma prática que pode se harmonizar com os interesses dos trabalhadores (para não dizer: com os interesses humanos, na medida em que o interesse humano por valorizar capital é um interesse totalmente estranhado e alienado), donde resvalarem na crença da “ética na política” e na fantasia da “boa política”, comandada por heróis e salvadores da pátria, etc. (pura mitologia política, mais velha que o governo de Péricles). Por tudo isso, insistem em manter o foco das lutas e das críticas no âmbito do Estado, campo de batalha da direita por essência e excelência.
No entanto, essas crenças resultam, na prática, em impotência política e na chorumela da falsa crítica do ressentimento.
É preciso assumir que o PT vacilou, dançou e rodou na arena da política. E que a tentativa de angariar força por meio de uma tese equivocada como essa (se é que não passa de um marketing político feito às pressas) não resultará em uma força política que há de contar com a adesão da força de um entendimento claro e honesto.
Se bem que, ao menos, reuniu em sua defesa um bocado daquelas esquerdas que sempre desprezou.

Agora, vejamos o outro lado.
Reconhecer que não houve golpe é reconhecer a verdadeira fisionomia da democracia burguesa, do Estado e da política em geral.
Este é um momento histórico propício, como raríssimas vezes se tem na história a oportunidade de se viver, para abrirmos os olhos a este fato.
É reconhecer que a democracia nada mais é que a forma que os interesses particulares, ou melhor, os capitais privados (reunidos em grupos ao redor de permanentes ou eventuais pontos comuns) disputam a tribuna da qual irão se proclamar interesses gerais, “da nação”, “do povo”, “do Brasil” etc.
Como se trata de uma arena onde combatem interesses particulares, ocasionalmente se apresentarão os que falarão em nome do trabalhador, sempre por ele, nem sempre para ele – e se tornarão aptos a servirem de jantar para as demais hienas.
Mas quem alega haver crise de representatividade na política apenas compartilha a mesma ilusão dos que denunciam agora o “golpe”. Desde quando a política visa representar o povo, ó cidadão da Disneylândia?
O poder político não emana de nenhuma forma de misticismo, tal como a “soberania” popular, e sim do poder material, econômico, o qual está muito bem representado na democracia.
Aliás, é o fato de haver tal poder econômico, ou seja, dominação social e secção da sociedade em classes, que explica a existência, a necessidade e os fins da política.
E é sobre a sociedade de classes que se ergue o Estado, a comunidade política dos cidadãos.
A cidadania é o resgate da comunidade perdida no mar burguês da competição universalizada, mas tudo nela é abstrato. O indivíduo se torna aí um punhado de números, por meio dos quais se decreta a igualdade de todos perante o Estado (escamoteando as diferenças sociais que vigoram na realidade cotidiana); e é assim que a expressão de sua sociabilidade na ética se degrada em códigos do Direito. A cidadania é, pois, o laço da comunhão de uma moral heterônoma, estatal, política, um “contrato social” imposto ao indivíduo; e o Estado jamais deixa de tutelar, pela lei e pela polícia, os membros dessa comunidade fantasmagórica, com o que não logra introjetar valores morais na formação dos princípios éticos de pessoa alguma, senão o medo.
O Direito é anti-ético. Tal como a moral, trata-se de um conjunto de normas que regula as relações sociais; porém, ao contrário dela, não emerge a partir de interações comunais e nem se afirma pelo reconhecimento de sua validade mesma, mas se impõe aos indivíduos em mútuo estranhamento de um ponto exterior e acima deles, se fazendo valer pela ameaça da sanção e, por tudo isso, evidenciando um caráter heterônomo, pueril, imputador, jamais permitindo e estimulando a autonomia, liberdade e responsabilidade dos indivíduos. O Direito é, assim, a expressão perfeita da hostilidade e da alienação que impera na sociabilidade anti-social da concorrência de todos contra todos.

Muitos et ceteras caberiam listar aqui, mas o que foi dito acima já é suficiente para uma conclusão.
Os termos da alternativa são os seguintes: ou os trabalhadores se levantam contra a democracia burguesa, isto é, contra o Estado, isto é, contra o Direito, isto é, contra a cidadania, isto é, contra a política, ou vão continuar catando cascalho nas rebarbas da historieta tupiniquim. Donde não caber aos trabalhadores a defesa da democracia, mas sim a agudização das contradições da sociabilidade burguesa que ela possibilitou que aflorassem, visando e forçando a resolução de tais contradições – algo que democracia nenhuma pode permitir ou realizar.
Comecemos por uma greve geral, já!
.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Uma nota a respeito do “combate à doutrinação nas escolas”

.
A despeito da intenção de combater o que identifica como “doutrinação” de alunos por professores, um blog chamado “Escola Sem Partido” – que reúne a nata azeda da direita mais ardilosa e ressentida do país – promove na verdade uma campanha de perseguição contra o pensamento marxista ou, antes, a qualquer coisa que assim lhes pareça adequado classificar, de acordo com parâmetros retirados da mais plena ignorância e/ou da mais rebaixada má-fé.

Pois a tropa do impolutos guerreiros da imparcialidade enxerga, com pleno apuro, um interesse ideológico no marxismo que não possui – e nem deseja possuir – a universalidade olímpica que a educação deve almejar, se quiser realizar-se com a perfeição que lhe cabe por definição e honradez.

Mas em que medida pode existir um puro desinteresse (social e político) no saber, ou em que medida essa suposta neutralidade social e política não seria apenas uma ficção (contrária, pois, inclusive a interesses legítimos numa educação humanista e crítica) para uso doutrinário e abuso político, é algo que talvez passe ao largo dessa militância “anti-doutrinária”. Talvez não.

Os sujeitos que escrevem no blog são explícitos ao pregarem que a “doutrinação” ocorre apenas no pensamento que diverge da verdadeira doutrina, digo, da imaculada concepção – um ideário mal ajambrado que gravita entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, tão “neos” quanto inconsistentes. Tudo aquilo que ideologicamente se coloca à esquerda, ou seja, na perspectiva social do trabalho, é tachado pejorativamente de “doutrinário”, de “emburrecimento”, “contaminação” político-ideológica, etc. É tal como se verifica no subnível do entendimento religioso mais ou menos consciente de seu sectarismo: “a minha teologia foi escrita pelo próprio deus, as teologias alheias são apenas formas de idolatria satânica e ignorância da Verdade, etc”.

De forma ingênua ou, ao contrário, maliciosa, trata-se de fazer alguém acreditar (e é claro que as montanhas de desavisados embarcaram) que a proposta não possui “qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”; como quem pretende que suas “idéias” ou, em termos mais concretos, seu posicionamento político, ideológico e doutrinário se situe acima das questões em debate na sociedade, acima dos conflitos e das lutas, acima dos antagonismos de interesses que estão postos pela própria situação dos indivíduos na relação social travada em torno da reprodução da sociedade. Ou seja, que seu discurso não seja ideológico, quando, na verdade, o é totalmente; que não seja político, quando o é integralmente; que não seja partidário, quando, mesmo não vinculado a nenhum partido específico, toma partido nas questões que me referi acima.

Além disso, se observarmos o que de fato ocorre nas escolas, fica fácil de perceber que professores que criticam e deturpam Marx, o socialismo e demais alvos da “anti-doutrinação” não estão na exceção, e sim na regra, enquanto defendem o empreendedorismo da venda de balas no sinal em direção ao futuro e certeiro cargo de executivo numa multinacional.

 Ora, se os alunos – “nossos intocáveis filhos” – quiserem entrar para o PT ou pro DEM, para uma religião qualquer, ter “orgulho” de serem brancos, brasileiros, héteros etc. (coisas nas quais a persistência certamente exige muito esforço), não cabe a ninguém bancar o paradoxal “anti-doutrinador” que lhes descerá goelas abaixo uma doutrina da “emancipação”. Que sigam o que lhes der na telha e errem por conta própria, pois nada pode ser mais contrário ao aprendizado e ao exercício de alguma liberdade e autonomia que esse discurso da “defesa de meu filho”.

A idéia de que haja ou possa haver essa tal “doutrinação” dos alunos por parte dos professores pressupõe 1) que os alunos recebam passivamente aquilo que os professores dizem em aula, como numa espécie de “lavagem cerebral” em laboratório, o que só existe em ficções das mais tolas; 2) que o próprio mundo humano não esteja permeado por idéias políticas, vindas de todos os lugares, e bem mais dos meios de comunicação (incluindo blogs) do que da escola – mas quem proíbe os filhos de assistir à TV, acessar a internet e sair do quarto?; 3) que o caráter político e ideológico dos assuntos que um professor aborda em sala de aula seja necessariamente danoso à formação cidadã do aluno; 4) que tal caráter político e ideológico não esteja presente também na metodologia de ensino, e que haja assuntos, áreas e conteúdos ideológica e politicamente neutros.

Tudo isso quando, ao contrário, ser “doutrinado” por uma ideologia ou muitas, bem como pela crítica às ideologias, não apenas é inevitável, como também faz parte da formação para a vida em sociedade. “Defender” o filho contra o próprio mundo, encerrando-o numa bolha contra tudo que o mundo lhe traz, o tempo todo, de ideologias e informações, isso sim é deletério. O desenvolvimento de uma consciência crítica não passa por se colocar à distância das ideologias, mas pelo saber que elas existem, porquê elas estão aí e o que elas dizem, para que o indivíduo possa formar uma posição própria a respeito delas. E isso vai acontecer de um jeito ou de outro, independente das intenções doutrinárias dos pais e dos professores.

Não digo que devamos “respeitar” o conteúdo de uma ideologia, como se isso fosse o mesmo que respeitar o indivíduo que as abraça. Tudo pode e deve ser colocado em discussão. E nesse processo, por vezes mais lento e contraditório que gostaríamos que fosse, o indivíduo vai lapidar o seu próprio posicionamento. Tal como estamos fazendo neste exato instante, e ao longo de nossas vidas, sempre.



O medo que certas esquerdas têm da revolução

.




Certas ditas esquerdas têm pavor da revolução.

A maioria delas não apenas expurgou a revolução de seus horizontes – donde o uso que fazem do termo “socialismo” (comunismo??? nem pensar) não remeter a nada mais que a velha socialdemocracia e suas ilusões idiotas de reformar isso e aquilo -, mas nega peremptoriamente qualquer possibilidade de haver uma e, acima disso, rejeita e execra qualquer circunstância que possa descambar em algo do tipo.

No teorismo sub-vulgar dessas esquerdas – em que coabitam os retalhos ideológicos mais inconsistentes o possível de serem concebidos (em separado, donde só mesmo seus geniais ideólogos podem costurá-los) -, há a concepção fundamentalíssima de um “etapismo” utópico que seria necessário para a revolução, sem o qual qualquer agitação das massas só pode ser desqualificada como uma espécie de “invasão bárbara” das ruas por hordas de usuários de pijamas.

Para que pudesse haver uma “autêntica” revolução, pensam os esquerdistas do Reino dos Céus, é necessário antes haver “consciência de classe”, e essa “consciência de classe” é uma “consciência política”; para haver essa “consciência política”, é preciso haver politização e educação, quer dizer, “educação crítica”; e essas coisas, politização e “educação crítica”, só podem ser desenvolvidas numa democracia.

Mas se a democracia atual não permite ou favorece nem uma coisa nem outra – ao contrário, tudo indica que nela temos a atrofia de ambas -, então é preciso “fortalecer” e, é claro, “aperfeiçoar” a democracia, antes de tudo.

Ficam, assim, nessa etapa inicial para sempre. Chamam essa vergonhosa realpolitik de “realismo”. Deixam a revolução para o eterno futuro, ou seja, tornam o que era um meio para se chegar a ela o seu fim último.

Entretanto, se as ruas insistem em negar que a revolução seja uma utopia e são tomadas por multidões perdidas em ignorância e desespero, tais esquerdas se lançam à tarefa suicida de menosprezá-las, reprová-las e contê-las, considerando-as como massa acéfala de manobra dos dominantes ou firmes batalhões de uma contra-revolução sem revolução.

Algumas dessas esquerdas, a minoria, percebem que não podem evitar considerar, por força das circunstâncias, haver a possibilidade da revolução; mas é necessário que a revolução seja a que trazem pronta em seus programas. Tais “esquerdas revolucionárias” começam e terminam por pensar que a revolução é sempre uma revolução planejada – tem data pra iniciar e acabar e traz de antemão, carimbado na testa dos indivíduos, o selo da “consciência de classe” (desenvolvida por meio da panfletagem do partido revolucionário na porta das manufaturas): pois uma revolução só pode ser, a priori, uma revolução “de esquerda”.

Jamais põem em conta que não é nenhuma “democracia crítica” ou atividade microlocalizada de marketing ideológico que “politiza” ou educa as massas na “consciência de classe”, mas sim a revolução mesma que permite fazê-los com alguma efetividade, ao longo de um doloroso, contraditório, sem datas e absolutamente incerto percurso – em que as esquerdas deveriam disputar as consciências, e não jogá-las imediatamente no lixo da política.

É assim que, antes mesmo de buscar de alguma vitória, entram na luta já derrotadas.

A História passará o rodo nelas. Façamos a História! Pois a revolução a princípio é sempre impossível, até o momento em que se torna inevitável, seja lá qual for o caminho que irá seguir – algo que depende totalmente das forças que a disputarão, donde ser absolutamente imprescindível uma esquerda disposta a agarrar o touro pelos cornos.


Nada mais natural que um pobre de direita




Parece uma contradição. Mas talvez não seja. É natural que os “pobres” gravitem ao redor do pensamento de direita. Claro que isso vale igualmente para a “classe média” (e o que dizer dos “ricos”?). E não há nada mais sobrenatural (sim, esse é o termo) que pobres, classe-médias e principalmente ricos de esquerda.

Antes que pensem que sou um naturalista maluco, quero dizer que não me refiro à nenhuma naturalidade biológica, mas sim a que decorre da atual forma social da vida humana.

É interessante notar que a galera “politizada” fica estupefata em constatar que o povão vota na direita e sustenta bandeiras as mais toscas e brutais, até mesmo contra seus próprios interesses – supondo que os indivíduos tenham alguma noção mínima de quais sejam estes, ou melhor, que não façam a velha confusão entre seus mais baixos e imediatos instintos burgueses e a consciência de si mesmos enquanto indivíduos sociais, o que demanda uma boa dose de reflexão.

Ser de direita é algo natural para quem nasce e vive trivialmente na sociedade capitalista; ora, não se pode esperar que o pensamento não acompanhe a forma de vida do indivíduo, e a forma de vida no capitalismo é aquela que coloca todos em concorrência e isolamento uns contra os outros. Vida selvagem, pensamento idem.

É preciso ter alguma sensibilidade (inata ou provocada, não vem ao caso) pra notar que essa forma de vida não é, digamos assim, tão orgânica quanto a naturalidade haveria de ser, e que poderia ser bem diferente e melhor, para então poder começar a fazer a crítica e se tornar de esquerda, e se lançar a um verdadeiro processo de educação da sensibilidade e do pensamento, de superação da naturalidade social posta para cada indivíduo desde seu nascimento (ou mesmo desde sua concepção).

Tudo se educa em nós, mas educar-se é uma questão que passa por uma necessidade que o indivíduo pode sofrer ou não. Além disso, este processo pode ser mais ou menos lento, doloroso e sempre contraditório, uma vez que a individualidade deixa de corresponder (ainda que tal correspondência seja brutal) à sociabilidade vigente, o que pode não ser muito confortável. E a vida na selva de pedra já é dura demais para ainda suportá-la sem as flores das ilusões e do autoengano, que encobrem e enfeitam os grilhões! O indivíduo pode facilmente preferir embotar a sensibilidade e sabotar o pensamento, gozar e acreditar no próprio cinismo e se dar por satisfeito, ou melhor, por adaptado e convencido de sua escolha.

Daí que não há nada de estranho no pobre que é de direita. Extraordinário seria o contrário.

Aliás, nem é estranho que, ainda que assuma uma posição crítica consciente, muitas vezes o indivíduo vacile e pense ou aja de forma machista, autoritária, possessiva, egoísta, fazendo piadinhas “politicamente incorretas” contra os mais fracos etc. Pois é preciso lutar contra o fascista que mora dentro, nascido na naturalidade social burguesa, e matá-lo no paredão da autocrítica: vencer-se a si mesmo cotidianamente, dado que a sociabilidade cotidiana é determinante da individualidade, de um modo ou de outro.

Isso é só o começo da longa e tortuosa trilha rumo à superação da atual forma de vida, trilha que só pode ser escalada em meio às mais complexas interações com outras individualidades dispostas à luta e a maioria contrária a ela. Pois o próprio indivíduo é, em si mesmo, um complexo, universal e contraditório nódulo na imensa rede humana tecida social e historicamente, em meio a toda sorte de outras tantas contradições que perfazem na vida prática a essência e existência humanas.

Superar as velhas contradições e alcançar o patamar de uma nova humanidade, tanto mais autônoma quanto mais se desgarra da heteronomia natural, e abrir os horizontes de uma vida autêntica: a mais radical, profunda, desejável e razoável tarefa humana. Eis aí a razão de ser da esquerda – mudar o mundo que criamos e recriamos o tempo todo e em sociedade.

Não se trata de esperar que os que virão façam isso, quando nós mesmos estamos vivos aqui e agora. Essa é a tarefa histórica que dá propósito e sentido para a vida. E o que poderia ser mais radical do que estar vivo?

“Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza, desenvolverá sua verdadeira natureza no seio da sociedade humana” – Marx.


Marx e as novas esquerdas




Quem já teve e fez valer a oportunidade de ler um texto qualquer de Karl Marx pôde perceber algumas especificidades, como a contundência implacável e devastadora de sua crítica, um limpa-trilhos que não deixa escapar nada de seu extremo rigor analítico; a fundamentação exaustiva, baseada em um conhecimento profundo dos assuntos abordados e em uma série gigantesca de referências, esmiuçadas em detalhes que chega a parecer preciosismo; o propósito de límpida clareza e franca honestidade, tendo em vista que a intervenção da teoria sobre a prática social e política dos indivíduos só pode ser realmente efetiva sobre estes pressupostos; um estilo literário requintado, sagaz, inclemente e sarcasticamente mordaz ao avaliar a sociabilidade atual e seus mais sumos apologetas; etc.

Estou chamando a atenção para isso porque não é à tôa que Marx coleciona tantos detratores e inimigos, dos mais raros elegantes aos mais abundantes hediondos, desde quando ainda vivia até os dias de hoje, inclusive dentro de certas correntes ditas “de esquerda”. Mas, se é verdade que ele nada teria mais a nos dizer, por que ainda se chuta tanto o que não seria outra coisa que um cachorro morto?

É notável que, nos círculos da suposta esquerda “não-marxista”, as posições, por mais sofisticadas que se apresentem, não apontam para nenhuma superação realista (ou mesmo fantasiosa) da situação humana atual, em livre e acelerado processo de degradação completa e universal. Tudo se resume a críticas pontuais e, ainda que justas, surgem isoladas de uma compreensão e pretensão de totalidade. Ao contrário, trata-se de negar a possibilidade de tal compreensão e de tal pretensão. Com isso, não apontam para além de um reformismo com fins a perfumar o esgoto no qual afogam-se todos.

Exatamente por conta disso, é fácil perceber que essa “esquerda” não-marxista reproduz todos os vícios da subjetividade estranhada e alienada que supostamente visa criticar – até porque só o faz teoricamente, mas não na prática. É como uma espécie de entretenimento acadêmico que não corresponde e nem visa corresponder à vida individual do próprio “esquerdista”, ou seja, é a crítica reduzida a um reles exercício de oratória – no que alguns se esmeram a ponto de enganar muita gente de boa-fé.

Já não nos faltam casos exemplares a confirmar o que poderia não passar de um mero indício – da completa desonestidade, por parte de tais retóricos, ao desprezarem o trabalho de Marx, mesmo quando feito com a complacência de colocá-lo ao lado de outros tantos “autores clássicos do pensamento ocidental”, aliás uma indulgência que só acentua tal desdém. Apenas mais um dentre tantos, portanto, alguém que pode ser nivelado por uma média, alguém que pode ser colocado na prateleira dos “autores de seu tempo”, ao lado dos demais.

No entanto, e não tenho porquê não dizê-lo, Marx é um autor excepcional. Isto em nada significa menosprezar os muitos brilhantes gênios da história da filosofia e da ciência, aos quais não cabe nenhum tipo de desmerecimento, ou ao legado que nos deixaram. Mas, ainda assim, são apenas alguns deles que possuem o direito a um lugar especial na História. Porém, Marx é o único deles cuja obra é absolutamente inescapável, seja como interlocutor ou mesmo adversário, se quisermos discutir a situação histórica atual da humanidade e suas perspectivas de futuro. Qualquer outra forma de tratamento a ele dispensada é digna de justificada desconfiança.

Marx é parâmetro para uma prática emancipatória sincera. Muitos outros escritores podem nos ser valiosos também. Mas, todos eles ou a ampla maioria, como notas de pé de página à obra do velho extraordinário.



Inveja esquerdista contra os bem-sucedidos?



Uma lorota recorrente contra Marx, ou mesmo contra toda e qualquer crítica ao capitalismo, é a que os acusa de não expressarem mais que inveja e ódio frente ao “indivíduo bem-sucedido”.

Não reclame de nada, porque quem protesta vê injustiça onde não há mais que demérito próprio. Pois não há objetividade social; tudo é subjetivo.

Esta é uma impostura que visa fazer-nos crer que as condições para “o sucesso” do indivíduo na vida mercantil são inteiramente provenientes de sua vontade e esforço. Amém!

Mas, se ele não alcançou tal sacrobendita glória, é porque não exercitou suficientemente sua disposição e suas virtudes, e agora lhe resta sentir-se culpado pelo próprio fracasso – nada que a próxima bíblia de auto-ajuda e ideologia burguesa para iniciantes não prometa resolver pela mesma via idealista, supondo que as dívidas não o impeçam de comprá-la; do contrário, ou não, nada melhor do que o malogro para fazer um coitado passar a projetar nos outros a imagem de uma “sociedade injusta” e nutrir pela pessoa do indivíduo “bem-sucedido” a raiva e inveja.

Donde o capital e sua posse são sinônimos de boa vontade. Crítica é o contrário, má vontade. Não importa que o capital possa ter um aspecto material; ele é pura subjetividade (ou então é feito carne atráves do exercício do verbo). E também não interessa se a crítica não contém juízos morais e nem sugere um tom agressivo; ela é puro e mesquinho ódio, e nada tem a ver com economia e sociedade.

Pois essa tal de “sociedade”, longe de ser aquele pólo universal que constitui a humanidade, dotado de objetividade – baita invenção de sociólogos e filósofos vermelhinhos! -, é apenas um punhado de indivíduos isolados, um amontoado de puras singularidades, tais como as “mônadas” de Leibniz que travam contato por meio do mecanismo harmônico das esferas ou da animalidade. Estranho que consigam se comunicar! E a tal da “economia” é simplesmente o mercado – igual àquela feira que rola no centro; “mercado” é apenas o troca-troca de bugingangas realizado por indivíduos absolutamente livres e autônomos que discutem suas estimativas pessoais até chegarem no acordo que estabelece, sem qualquer parâmetro real (ou mesmo subjetivo, uma vez que os indivíduos são totalmente singulares), o preço das mercadorias, um escambo que lança mão de dinheiro (cujo valor também provém de um misterioso combinado) pra “simplificar” a efêmera casualidade desta vinculação entre tais sujeitos, dissipada imediatamente após o intercâmbio dos objetos.

Ao reduzir a economia e o próprio “deus mercado” a essa trivialidade absoluta, não mais soa estranho que todo tipo de relação entre os sujeitos também seja reduzido a uma analogia mercantil, do que se pode medir a dignidade dessa subjetividade sob tal concepção burguesa. O que estamos vendo é exatamente o que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria”, a relação entre coisas no mercado determinando a relação entre os indivíduos, e como isso fomenta no pensamento as idealizações apologéticas do capitalismo.

Por permanecerem nessa superfície empírica abstrata é que os espadachins da defesa do capitalismo afirmam que a “luta de classes” não passa de uma fantasia sádica com que o masoquista justifica sua inveja, sem nenhuma correspondência com a relação inversa (que ocorre no mundo real) entre lucro e salário – categorias que são idênticas na cabeça dos encomiásticos lambedores das solas do patronato.

No quintal da imaginação mercenária, adubado com o esterco barato da adoração à própria coisificação enquanto mercadoria produtora de panegíricos da submissão, encontramos a sensatíssima idéia de que Marx teria inventado a inveja e o rancor daqueles que trabalhavam 16 horas diárias na mina (incluindo crianças) contra a situação financeira e os merecidos luxos do dono da mina. Pois, até então, todos esses miseráveis reverenciavam o capitalista ao cumprimentá-lo chamando-lhe de doutor.

E temos também a fabulosa constatação de que Marx, na medida que ainda hoje exerce tremenda influência sobre os sentimentos humanos – especificamente sobre aqueles humanos que dedicam a maior parte de suas vidas para trabalhar em troca de salário, esse “lucro” que o trabalhador recebe não pelo que produz, mas pelo tempo em que trabalha e que sempre corresponde ao mínimo necessário para reproduzir seus talentos de trabalhador e adestrar os filhos para substituí-lo depois que torna-se inútil (portanto imoral, pois virou fardo a ser sustentado até a morte) -, só pode ser um poderoso espírito maligno, cujo exorcismo deve ser difundido globalmente custe-o-que-custar, mesmo que para isso seja preciso uma ditadura de apóstolos da moral que esmague a individualidade e a liberdade dos malditos comunistas. Socorro, Liga da Justiça!

Enfim. É notável como tudo isso não passa de uma versão ultra-idealista e hiper-idiotizada da falácia ad hominem, que consiste em atacar o mensageiro para não responder a mensagem. É como se a crítica não tivesse um conteúdo textual próprio, ou como se tal conteúdo, uma vez exteriorizado numa mensagem, ainda dependesse de alguma forma da interioridade do sujeito que o enunciou; ou ainda, como se a legitimidade da mensagem não fosse posta por seu próprio conteúdo, e sim pela pessoa do sujeito.

Curiosamente, o indivíduo que descamba para esse recurso retórico de sofista da zona portuária é quem revela, pura e simplesmente, patifaria e covardia próprias de quem é incapaz de permanecer no assunto – pois acabou seu estoque de gomalinas e nada mais tem a responder ao que, está claro, lhe pôs na parede. Ao contrário disso, muito teria ele de valor intelectual e moral se preferisse oferecer-nos seu silêncio, que nada depõe contra ninguém mas, diante desse descalabro, seria sim pura virtude.


Direita e Liberalismo: política e ideologia pequeno-burguesas

.


A direita não é burguesa.

O liberalismo (desde o marginalismo e o keynesianismo – sic! – até suas mais novas variações, o que chamam de “libertarismo”) não é uma ideologia burguesa.

Apesar de a direita e o liberalismo defenderem a burguesia com tórrida paixão – sentimento escaldante por aquilo que não possuem, por aquilo que não são e, principalmente, por aquilo que não podem ser e nem podem possuir.

Direita e liberalismo são, respectivamente, posição política e ideologia pequeno-burguesas.

A burguesia não está interessada em ideologia, teoria, pensamento político ou social. Tudo isso tem para ela apenas o valor e importância de uma curiosidade metafísica. Enquanto isso, ela financia os atores da política e mantém o Estado refém de seus papéis de dívida pública – paga eternamente usando o dinheiro dos trabalhadores – e não se apoquenta com social-democratas se esfaqueando para assumirem cargos de lambedores de rabos burgueses.

Ou seja: a burguesia não é de direita, senão na medida de seu oportunismo. E muito menos é “liberal-platonista”, em busca do capitalismo “ideal” (que só existe na especulação sub-academicista dos economíticos), mas sim “liberal-realista”, ou seja, tão “liberal” quanto o seu pragmatismo imediatista demanda, convém e pode ser, ainda que isso se mostre o mais completo contrário do liberalismo (nada mais recorrente e trivial na história); donde o Estado realmente “ideal” para a burguesia, a medida “excelente” da intervenção estatal no mercado e de sua plena liberdade, ser aquilo que garante a ela o lucro, não importa se os pé-rapados da intelligentsia do capitalismo elaboram em seus think-tanks de esquina uns tantos termos pirracentos pra resmungarem contra este “Estado ideal” verdadeiramente existente e possível de existir, tais como “totalitarismo”, socialismo (!) ou qualquer outro rótulo insignificante.

Enquanto isso, o dono da padaria, sua prole de dondocos e coleguinhas assumem a frente da defesa ideológica e política do capitalismo, imaginando que capitalismo é abrir uma padaria, trabalhar no caixa e vigiar os trabalhadores preguiçosos (pois é isso que os faz não serem patrões), sonegar impostos, lavar dinheiro trocado e reclamar de taxas, fiscalização e burocracia (essas coisas comunistas e desagradáveis).

Imaginam que capitalismo é esse negócio de trocar coisa por dinheiro e dinheiro por coisa. Simples assim. Pra que Estado? Só pra fazer tudo ficar complicado, e também pra estimular o marasmo dos trabalhadores e sustentar vagabundos nos hotéis presidiários.

O Estado é que define o que é direito à propriedade, este que, por sua vez e em sua efetividade, permite existir o campo da sacrossanta “liberdade” burguesa – por meio do “jus utendi et abutendi” – e ainda estabelece as condições mínimas para haver alguma concorrência, mercado e o “respeito” a essas mesmas condições (o que não cabe à moral, mas à polícia, etc., assegurar); do que se conclui que capitalismo sem Estado é tão plausível quanto a vida na selva, tão livre quanto as relações entre leões e gazelas.

Apesar disso, o Estado é acusado de “roubar” o pequeno-burguês por meio de seus tributos injustos, sendo assim um ladrão por natureza. Mas é como se o roubo, enquanto violação da propriedade, não pressupusesse o direito à propriedade outorgado pelo próprio Estado; aliás, “roubo” é uma categoria jurídica. Sem o Estado, a propriedade só poderia ser um direito e uma realidade, e permitir existir o roubo, se a musculatura do braço e a firmeza dos punhos fechados pudessem servir-lhe de fundamentação. E também de moeda nos “mercados livres”, é claro.

(Estado também serve pra financiar a propriedade privada. Mas, antes de acusarmos nosso proprietário de máquina registradora de cuspir no prato em que burguês come, notemos o seguinte: o Estado financia a propriedade burguesa, e não quitandas de feira hippie. Pequenos-burgueses não são burgueses, são apenas trabalhadores que brincam de imitar a burguesia e de fazer competição de tiro-ao-pé.)

Vamos ver este “roubo” mais de perto. Dizem os capitalistas nanicos que direitos trabalhistas oneram a produção e afetam seus lucros, ou melhor, os saqueiam; mas dizem outra coisa além disso: que este problema devia ser preocupação dos consumidores (ou seja: de ~todos~. “Somos os representantes universais da sociedade!”), pois nosso caixa de padaria repassa os custos dos direitos trabalhistas pro consumidor.

Como se o consumidor não fosse, antes de mais nada, trabalhador. Como se o trabalhador estivesse protegido de virar escravo por algo mais que tais direitos (muitos, ainda que “com direitos”, viram). Como se todo custo de produção não fosse incidir no preço final.

Mas o que é a concorrência, senão aquilo que fará o pequeno-burguês apelar pra todas as formas de produzir mais barato, formas para além ou aquém da lei que o nivela aos seus concorrentes?

Se o trabalhador puder sustentar alguns custos, e se a ideologia justifica isso – é para o que ela serve, afinal -, então que eles paguem tais custos, principalmente porque o indivíduo que importa é “o cliente”. Tudo por ele! E deste tudo, o máximo do trabalhador.

Se o trabalhador não quiser, tudo bem. Ele é livre para trabalhar em outra padaria. Há muitas.

Eis o que é capitalismo, na visão do pequeno-burguês; segundo a qual banqueiros são comunistas, pois financiam a política, enquanto o pequeno-burguês é quem sustenta no lombo o Estado…