quinta-feira, 21 de julho de 2016

Marx e as novas esquerdas




Quem já teve e fez valer a oportunidade de ler um texto qualquer de Karl Marx pôde perceber algumas especificidades, como a contundência implacável e devastadora de sua crítica, um limpa-trilhos que não deixa escapar nada de seu extremo rigor analítico; a fundamentação exaustiva, baseada em um conhecimento profundo dos assuntos abordados e em uma série gigantesca de referências, esmiuçadas em detalhes que chega a parecer preciosismo; o propósito de límpida clareza e franca honestidade, tendo em vista que a intervenção da teoria sobre a prática social e política dos indivíduos só pode ser realmente efetiva sobre estes pressupostos; um estilo literário requintado, sagaz, inclemente e sarcasticamente mordaz ao avaliar a sociabilidade atual e seus mais sumos apologetas; etc.

Estou chamando a atenção para isso porque não é à tôa que Marx coleciona tantos detratores e inimigos, dos mais raros elegantes aos mais abundantes hediondos, desde quando ainda vivia até os dias de hoje, inclusive dentro de certas correntes ditas “de esquerda”. Mas, se é verdade que ele nada teria mais a nos dizer, por que ainda se chuta tanto o que não seria outra coisa que um cachorro morto?

É notável que, nos círculos da suposta esquerda “não-marxista”, as posições, por mais sofisticadas que se apresentem, não apontam para nenhuma superação realista (ou mesmo fantasiosa) da situação humana atual, em livre e acelerado processo de degradação completa e universal. Tudo se resume a críticas pontuais e, ainda que justas, surgem isoladas de uma compreensão e pretensão de totalidade. Ao contrário, trata-se de negar a possibilidade de tal compreensão e de tal pretensão. Com isso, não apontam para além de um reformismo com fins a perfumar o esgoto no qual afogam-se todos.

Exatamente por conta disso, é fácil perceber que essa “esquerda” não-marxista reproduz todos os vícios da subjetividade estranhada e alienada que supostamente visa criticar – até porque só o faz teoricamente, mas não na prática. É como uma espécie de entretenimento acadêmico que não corresponde e nem visa corresponder à vida individual do próprio “esquerdista”, ou seja, é a crítica reduzida a um reles exercício de oratória – no que alguns se esmeram a ponto de enganar muita gente de boa-fé.

Já não nos faltam casos exemplares a confirmar o que poderia não passar de um mero indício – da completa desonestidade, por parte de tais retóricos, ao desprezarem o trabalho de Marx, mesmo quando feito com a complacência de colocá-lo ao lado de outros tantos “autores clássicos do pensamento ocidental”, aliás uma indulgência que só acentua tal desdém. Apenas mais um dentre tantos, portanto, alguém que pode ser nivelado por uma média, alguém que pode ser colocado na prateleira dos “autores de seu tempo”, ao lado dos demais.

No entanto, e não tenho porquê não dizê-lo, Marx é um autor excepcional. Isto em nada significa menosprezar os muitos brilhantes gênios da história da filosofia e da ciência, aos quais não cabe nenhum tipo de desmerecimento, ou ao legado que nos deixaram. Mas, ainda assim, são apenas alguns deles que possuem o direito a um lugar especial na História. Porém, Marx é o único deles cuja obra é absolutamente inescapável, seja como interlocutor ou mesmo adversário, se quisermos discutir a situação histórica atual da humanidade e suas perspectivas de futuro. Qualquer outra forma de tratamento a ele dispensada é digna de justificada desconfiança.

Marx é parâmetro para uma prática emancipatória sincera. Muitos outros escritores podem nos ser valiosos também. Mas, todos eles ou a ampla maioria, como notas de pé de página à obra do velho extraordinário.



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